domingo, 4 de março de 2018

TÔNIA CARRERO, UMA DAS ÚLTIMAS ATRIZES PIONEIRAS DO CINEMA DO SÉCULO XX, DESCANSA EM PAZ






Texto: Emerson Links.



Ela adaptou o padrão de atuação universal hollywoodiano em produções de cinema da Vera Cruz. Em contrapartida revigorou a estética do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), onde não era comum abrigar mulheres autenticamente bonitas (que empreendiam a arte de representar), e com o passar dos anos se tornou figura marcante nas produções dos anos de ouro da Rede Globo (iniciando em "Pigmalião 70" porém alcançando o auge da popularidade com o lançamento de "Água Viva", folhetim de Gilberto Braga). O afastamento gradual dos holofotes, ajudou a construir o mito que o público seleto amou cultuar através das memórias das mídias eletrônicas (anos 1990) e virtuais (século XXI). Com vocês, uma breve análise da carreira de uma artista brasileira sem igual.





  Antes de qualquer menção equivocada brindada pelos jornalistas da nova geração que só assistem novelas, eu gostaria de cutucar a todos informando que a bela atriz, quando jovem, ainda não trabalhava com teledramaturgia, portanto, não era "apenas" um ícone da televisão brasileira conforme foi decretado pelo G1. Tonia Carrero representou simplesmente a nova safra de estrelas do nosso cinema, que nos anos 1950, resumia-se a comédias despretensiosas para as massas, invariavelmente produzidas pelas "companhias" Vera Cruz, Atlântida, Herbert Richers e Mazzaropi Produções (era assim que chamavam aquilo que, hoje, conhecemos como "produtoras"). Sim, representou, porque, antes dela (Tônia) chegar a protagonizar os filmes dramáticos que começaram a ser realizados na década de 1950, havia, entre outras ilustres, a grande dama do teatro, Cacilda Becker, que participou de "Floradas na Serra", e também, Eliane Lage, que se transformou em um mito após sua curta carreira em filmes como "Caiçara" (1950), "Angela" (1951), "Terra é Sempre Terra" (1951), "Apassionata" (1952), este último, por sinal, estrelado por Tônia Carrero, em grande estilo. Porém, Eliane Lage fazia o tipo cabocla, Fada Santoro (de "Areias Ardentes", 1952) exercitava a imagem de boa moça em busca da versatilidade, Heloísa Helena (de "Terra Violenta", 1948) era a urbana do cotidiano, Eva Wilma, a heroína preterida ("Uma Pulga na Balança", 1953, e seriado "Alô Doçura"), Eliana Macedo ("Carnaval no Fogo", 1949) lembrava sempre aquela moça prendada conferindo a fila de pretendentes (mesmo em 1958, em "Alegria de Viver", filme que comemorava os primeiros passos de dança do rock and roll brasileiro, ela se manteve a jovem que toda família queria ter em casa como nora). Enfim, o ingresso de Tônia Carrero no cinema brasileiro revestiria as telas de um glamour dificilmente encontrado em estreantes de plantão. Haja vista que até cantoras maravilhosas como Angela Maria, Emilinha Borba, Inezita Barroso, Adelaide Chiozzo e Doris Monteiro, que estavam em alta no rádio, tinham boa receptividade nas chanchadas brasileiras (as três últimas citadas tinham papéis definidos em cada filme). O cinema brasileiro, assim como no resto do mundo, também, necessitava ter seu cast de belas atrizes que tratassem com dignidade a arte de representar. E não era uma reivindicação fácil de ser atendida, haja vista que vedetes em evidência como Dercy Gonçalves, Sonia Mamede e Anilza Leoni inclinavam-se para as comédias e as atrizes de talento (porém meramente simpáticas) como Renata Fronzi, Eva Todor e Célia Biar ficavam em outras posições de destaque sem nunca alcançar o status de estrela principal. Barreira essa que seria rompida depois com o surgimento de beldades como Odete Lara, Ilka Soares, Norma Blum, Elizabeth Gasper, Theresa Amayo, Maria Dilnah, Norma Benguell (isso já em meados dos anos 1950 em diante). Todas estas marcaram toda uma geração. Não importando medir a dimensão de beleza, interpretação dramática ou glamour casual, pode-se dizer que Tônia Carrero foi o big-bang da modernização de todo um sistema de broadcasting.



  A jovem Maria Antonietta de Farias Portocarrero, que nasceu a 23 de agosto de 1922, no Rio de Janeiro, e foi criada na zona sul da capital carioca. Era descendente do marechal Hermenegildo de Albuquerque Porto Carrero (barão de Forte de Coimbra), e que, apesar de ser graduada em educação física, optou pela arte dramática indo estudar teatro em Paris. Entretanto, antes de frequentar qualquer curso de especialização, recebeu o convite para atuar no filme "Querida Susana" (1947), de Alberto Pieralise, com os jovens Anselmo Duarte e Nicette Bruno. No início, o que chamava a atenção era a sua beleza aristocrática, eventualmente poderia interpretar o que quisesse, considerando que seu rosto marcadamente europeu afastava-a das personagens varzeanas. Charme, elegância e cordialidade caracterizavam a atriz em sua primeira fase. O carisma, sem dúvida, foi o que garantiu seu passaporte para o teatro. Foi nessa escola que Tônia Carrero aprendeu o que lhe garantiu sustentação por toda uma carreira, ou seja, a construção de uma personagem aproveitando elementos sólidos da própria personalidade. Exemplos: Rita Hayworth, Gene Tierney, Lana Turner, Donna Reed, Dorothy McGuire e Elizabeth Taylor (nem sempre num único tom interpretativo, vide sua carreira nos anos 1960 e demais épocas). Todas estas, assim como Tônia, começaram a colher frutos a partir da década de 1940. A diferença é que a base principal de nossa estrela foi sua iniciação no teatro. Melhor que isso, podia contar com seus colegas de profissão que pertenciam ao mais alto escalão das artes cênicas. Paulo Autran, que se tornaria o Laurence Olivier brasileiro (considerado o ator mais completo do século XX), seria peça fundamental na ascensão de Tonia Carrero como atriz. Ao lado dele, a bela estreou na peça "Um Deus Dormiu Lá em Casa", de autoria de Guilherme Figueiredo, sob direção de Silveira Sampaio. A boa repercussão do espetáculo rendeu-lhe o prêmio de atriz revelação pela Associação dos Críticos Cariocas em 1949. Ela não era mais um rostinho bonito. Vale dizer que, nesse meio tempo, o cinema ainda pedia passagem para Tonia e com isso, obteve presença marcante em outros dois filmes da época, "Caminhos do Sul" (1949) e "Perdida pela Paixão" (1950).
  Até então, a atriz era casada com Carlos Arthur Thiré, mas logo acabaria se envolvendo afetivamente com o diretor italiano Adolfo Celi e essa união resultaria em casamento em 1951 e, consequentemente, num contrato assinado com a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. A convite do empresário Franco Zampari, sob os olhares vigilantes de Celi, a moça foi estrela dos principais filmes produzidos neste período. Ei-los: "Apassionata" (1952), "Tico-Tico no Fubá" (1952) e "É Proibido Beijar" (1954). Um ano antes, Tonia Carrero já fazia parte do lendário TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), onde atuou até 1955, quando decidiu fundar, com Paulo Autran e Adolfo Celi, a Companhia de Teatro Celi-Tônia-Autran (CTCA). Essa companhia pavimentou o grande circuito do teatro brasileiro que reverenciou os grandes autores clássicos universais como William Shakespeare e filosóficos como Jean-Paul Sartre.

Tônia ao lado do ator clássico, Paulo Autran.

Em "Tico-Tico no Fubá", contracenando com Anselmo Duarte.


  Em 1962, ainda participaria do filme "Esse Rio que Eu Amo", de Carlos Hugo Christensen, com roteiro de Millôr Fernandes, mas acabaria sendo seduzido por trabalhar na TV, porém continuaria firme no teatro mesmo após se separar de Adolfo Celi. Dois anos depois casou com César Thedim, engenheiro e produtor cinematográfico, responsável por filmes como "Deuses e Os Mortos" e "Azyllo Muito Louco" (ambos de 1970) e "Como Era Gostoso o Meu Francês" (1971). Sobre este seu terceiro marido ela teceria o seguinte comentário a Revista Época em 2009: "Ele era muito divertido, maravilhoso, não como companheiro. Melhor dos amigos e pior dos maridos" - definiu a atriz fazendo um balanço geral de sua vida conjugal. Suas memórias passaram a integrar um livro da Coleção Aplauso, "Movida pela Paixão". É de conhecimento público que muitos escritores e artistas em geral eram apaixonados por ela. Nem Paulo Autran em início de carreira escapou desta lista. Em defesa da atriz, ele já fez o que havia de mais ousado, ou seja, cuspir na cara de um crítico. O saudoso Paulo Francis levou a pior em um episódio especifico quando teceu comentários negativos sobre o trabalho de Tônia. Quer mais paixão que isso? E Paulo Autran, por mais que fosse questionado, uma vez que permanecesse vivo frente a Geração Internet, por sua atitude indelicada, ainda teria cacife por ser o maior ator da história do teatro brasileiro do século XX.

          Nicete Bruno, Paulo Autran e Tônia. Crédito fotográfico: Antonio Aguillar. 

Tônia Carrero e Ziembinski.


  A memória da artista bem que merecia um filme, considerando uma época onde a efervescência de cinebiografias favorece a nossa memória cultural, por muitas décadas relegada a um segundo ou um terceiro plano, agora emerge através de iniciativas iluminadas. Nas décadas anteriores cinebiografias eram lançadas de forma muito espaçada e poucas contavam histórias de atrizes, como nas década anteriores, que tivemos o longa-metragem sobre o cineasta Eduardo Abelin, "Sonho sem Fim" (1986), dirigido por Lauro Escorel, e, principalmente, "Leila Diniz" (1987), de Luiz Carlos Lacerda, sobre a saudosa atriz que estremeceu as estruturas do meio artístico dos anos 1960 e que morreu precocemente em um acidente aéreo em 1972.  É certo que no período de escassas produções que retratavam a vida de artistas brasileiros, Tônia Carrero estrelou três produções, tais como "Sonhos de Menina Moça" (1987), "A Bela Palomera" e "Fogo e Paixão" (ambos de 1988). Os convites para o cinema foram diminuindo restando apenas "O Gato de Botas Extra-terrestre" (1990) e sua última e derradeira aparição no drama "Chega de Saudade" (2008). Observa-se que sua atuação na TV era mais constante possivelmente por causa do retorno financeiro e pelo fato de estar cercada de maiores regalias que dificilmente ocorrem na Sétima Arte brasileira. Tonia era uma atriz que, apesar da influência libertadora do teatro, cresceu sob influência estética das grandes estrelas de Hollywood (fato que a Vera Cruz não deixa mentir), nem as maquiagens ou os vestidos da época.
  É perfeitamente aceitável que o corpo físico de 95 anos de Tonia Carrero tenha nos deixado em 3 de março de 2018, na Cliníca São Vicente, na Gávea, na Zona sul do Rio de Janeiro, porém, conforme a ocorre em esferas universais, nasceu um novo mito que a partir de então poderá ser cultuado por todos os amantes da cultura artística em geral. A vida continua. Para quem ainda não sabe, Tonia Carrero é mãe do também renomado ator Cecil Thiré (das clássicas novelas "Escalada" e "Roda de Fogo"). Ela, por assim dizer, impulsionou uma dinastia de artistas que se manterá viva por muito tempo, através dos netos e bisnetos. Todos estes, no caso dos netos (Miguel Thiré, Luisa Thiré e Carlos Thiré) também se revelaram atores competentes em diferentes graus de percepção e com determinadas variações, de acordo com o avaliador ("crítico") em questão. Ainda tem Vítor Thire, filho de Luísa e, consequentemente, neto de Cecil e bisneto de Tônia.

Cecil Thiré ainda criança com a mãe Tônia Carrero.


Da esquerda para a direita: Cecil Thiré, Tonia Carrero e Miguel Thiré.

Tônia Carrero e seu único filho, o diretor e ator Cecil Thiré.


  Como se vê, muitas vezes, o amor à arte sublima toda e qualquer acusação de nepotismo. O mais importante antes de ingressarmos em novas polêmicas é exercitarmos a memória cultural de uma nação tão sucateada por políticos corruptos e empresários inescrupulosos. Seria melhor que, de vez enquando, pelo menos, o povo, ao invés de perder tempo nas redes sociais discutindo a candidatura de algum "macunaíma" a Presidência da República pudesse colocar em sua agenda um pouco de entretenimento sadio. Na arte também se faz política, dependendo do caso. Mas, num breve momento cultural saudosista, mesmo sem eu ter vivido as décadas de ouro do cinema, fico com um sentimento de vazio com a morte de Tônia Carrero. O Brasil podia ser mais alienado no passado, porém, sinto, através dos relatos do artistas clássicos que entrevisto, que era certamente um país mais divertido que hoje. Por uma arte com mais aplausos e menos vaias gratuitas, revigoro minhas convicções. (...) E as pedras continuarão rolando... e os palcos e os holofotes idem. Graças a Deus!!!








Para saber mais sobre Tonia Carrero, assista no you tube:




Tonia Carrero entrevistada por Bruna Lombardi.




                                            Tonia Carrero - Notícias ao Minutos Brasil.


Eva Wilma fala sobre a morte de Tônia Carrero.


Tônia Carrero no Programa Cultura Retrô.


Recordar é Viver resgata entrevista de Tonia Carrero.


Video Show, Rede Globo. Entrevista com Tônia Carrero sobre lançamento de sua biografia.

Lançamento da biografia da atriz no Rio de Janeiro. "Movida pela Paixão", Coleção Aplauso.


Aniversário de 90 anos de Tonia Carrero.