segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

"MINHA FAMA DE MAU", O FILME SOBRE ERASMO CARLOS

Como diria o próprio Erasmo Carlos: "Falem mal, mas falem de mim". Eu iria mais adiante: "Melhor que tivéssemos muitas coisas boas para falar, só que não...". Erasmo não inventou o termo citado, mas o tornou famoso, numa época em que os jovens começaram a se expressar contra o mundo dos adultos.  



  Pensando melhor não é um filme bom nem ruim, apenas não se encaixa com a proposta apresentada. Ficaria melhor se fosse uma comédia juvenil com os mesmos atores centrais sem contar a história de nenhuma figura pública, afinal, ninguém do elenco se parece com os ídolos em foco. Como se trata de uma autobiografia transcrita para o cinema, o comprometimento se torna arriscado e aí tudo aquilo que poderia ser uma verdadeira festa de arromba se torna um parque de diversões com a roda gigante quebrada. E é assim que começo a analisar o longa-metragem "Minha Fama de Mau", dirigido por Lui Farias.
  Questão 1: Chay Suede é um ator dedicado, sim, mas assistindo cenas dos momentos históricos do filme e mais fragmentos postados pela produtora Downtown, em seu canal no you tube, reparei que os figurinos em foco, por exemplo, estão em completo descompasso para com as principais fases da carreira do cantor. O Erasmo Carlos só usou topete nos anos 1950 e, nos anos 1960, usou franja por um período e cabelos lisos mais soltos. Me espanta o próprio biografado deixar escapar detalhes relevantes sobre sua história contada em um livro autobiográfico, lançado anos antes, e que pegou o título emprestado de um dos seus maiores sucessos "Minha Fama de Mau".  Por tal razão, a falha da produção em reconstituir o visual da época de juventude do cantor é imperdoável. Qualquer video-tape antigo do programa jovem guarda da TV Record ou exemplares avulsos da Revista do Rádio, Radiolândia, Intervalo e Revista do Rock, resolveriam as dúvidas à respeito da cenografia, dos cortes e penteados dos cabelos e figurinos vigentes nos anos 1950 e 1960. Mas pior ainda é quando se descobre que a fase mais madura da carreira de Erasmo foi praticamente deletada do roteiro, o que seria gratificante para o cantor apresentar um retrato do seu amadurecimento musical. Mais ainda: Insisto em dizer que Chay Suede (longe de ser um sósia de Erasmo Carlos) merecia ser melhor assessorado. É de conhecimento público seu esforço em composição de personagens.
Questão 2: Outro ponto crucial perdido no horizonte: O ator que faz Roberto Carlos (Gabriel Leone), que mais aparenta ser um surfista em busca da melhor onda, pouco soube captar o astral do Rei. O dito cujo nem se deu ao trabalho de, pelo menos, imitar o timbre de voz do Brasa, exercitar trejeitos e demais manias da grande personagem histórica. Pior é ainda quando o assunto é caracterização estética: os mais atentos perceberão que o Roberto Carlos do filme aparece de cabelos longos em pleno ano de 1958 (época que nem os Beatles sonhavam com isso - sequer existiam - só lançariam essa moda do penteado com franja e cabelos compridos por volta de 1963. Erro de continuidade mesmo, pois, nos anos 1950, Roberto Carlos tinha cabelo curto e topete com brilhantina e imitava Elvis Presley (qualquer video no you tube mostra isso, como por exemplo, uma sequencia do filme "Minha Sogra é da Polícia"). Apesar de todos os tropeços de produção, era de se esperar que, com todos os problemas de interpretações de outro atores, Leone ainda colecionaria elogios da mídia corporativista que jamais faria algo para prejudicar todo o lobby de distribuição do filme). Em tempo: os próprios biografados passariam por deselegantes se criticassem depois tantas mancadas que o filme apresenta. 
Questão 3: A atriz que interpreta Wanderlea (Malu Rodrigues, muito bonita) se escorou no tipo heroína de novela, algo mais com cara de anos 1990 que qualquer outra coisa pertinente ao período retratado. Enfim, sua personagem não tem nenhuma chance em cena. Ela realmente poderia ter feito mais, porém, fica sem profundidade de campo e ingrediente emocional sútil, até evaporar dentro da história. Apesar disso, o ator que interpreta Tim Maia mais parece ter sido extraído do programa humorístico A Praça É Nossa.
Questão 4: A situação se agrava quando personagens relevantes são completamente ignorados (ou transitam numa estratosfera imaginária como almas penadas), tais como Renato e seus Blue Caps (a primeira banda de visibilidade que proporcionou a Erasmo, então vocalista, obteve sua grande oportunidade de gravar um álbum inteiro e é apenas citada em uma cena), The Fevers (nem citado o é), The Jordans (idem), The Jet Black's, The Youngsters, Eduardo Araújo, Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Rosemary, Reynaldo Rayol, Cleide Alves, Getúlio Cortes, e os DJs Antonio Aguilar, Jair de Taumaturgo, José Messias, entre outros "esquecidos". Ninguém é tratado da forma que historicamente merece. Um detalhe: Bruno de Luca poderia ter engordado e ficaria melhor como Carlos Imperial ou, na minha opinião, ficaria melhor como Paulo César Barros, do Renato e seus Blue Caps. Também achei desnecessário Bianca Comparato encarnar (quase) todas as mulheres que fizeram parte da vida amorosa de Erasmo Carlos. Que eu saiba não seria problema financeiro da produção contratar outras atrizes para viver as mais variadas mulheres do Tremendão. Em resumo de ópera, o filme dá vários tiros no pé, porém, agrada em cheio os leigos e a maioria dos jovens acostumados com o seriado Malhação e que jamais se informaram sobre a realidade estética e sonora do início do rock and roll e jovem guarda.  
  De resto, cabe dizer que seria um grande filme se engrenasse num tom sério, porém o clima é de chanchada juvenil. Em contrapartida, os números musicais estão tecnicamente muito bem gravados. E se tem um lado positivo, neste horizonte, que compensa a decepção estética do filme é que os atores sabem cantar todos os sucessos de Roberto e Erasmo Carlos de forma eficiente. Mas a pedra continua no sapato em quase todo tempo de duração do filme, ou seja, o "Erasmo dos anos 1960" continua em todo o resto do filme com o cabelo do "Erasmo dos anos 1950", faltando ainda, por parte do ator principal, explorar expressões faciais personalizadas do "ícone". Tremenda mancada! E olha que qualquer foto de revistas antigas ou mesmo disponibilizadas por colecionadores na internet mostram o Erasmo Carlos original usando um penteado à la Beatles, depois de 1964. Chay, o protagonista do filme, parece que assistiu apenas o Especial de Elvis Presley de 1968, pela NBC (e caso não tenha assistido é mera coincidência o uso constante do traje de couro pós década de 50). Não custava nada ter caprichado um pouco na maquiagem. E fora isso, gostaria de acrescentar que ver Gabriel Leone interpretando Roberto Carlos me provocou o mesmo mal estar que tive quando assisti Michael Douglas encarnando o célebre pianista Liberace. E olha que tinha Matt Dammon com seus altos e baixos para disfarçar os furos dos personagens em "Minha Vida com Liberace". Neste a narrativa segue uma liberdade poética, o que não funciona em "Minha Fama de Mau". Assim sendo, anote aí uma lição do cinema universal: nem sempre personagens e atores andam juntos pela mesma estrada.


O elenco jovem do filme, que pouco sofre transformações estéticas nas várias fases. 


  O diretor Lui Farias, em uma entrevista, afirmou que desejava se aproximar da linguagem atual (sic) para seduzir o público da nova geração. Esqueceram várias gírias, formas de expressão corporal típicas de uma época e objetos iconográficos fundamentais. Então, pergunto, se a intenção foi repaginar tudo, qual a lógica de contar a história de "uma amizade que marcou gerações"? (frase que contraditoriamente consta no cartaz do filme). O Tremendão merecia mais, mas o próprio deixou a "brasa" apagar, provavelmente envolvido com seus shows pelo país não pode supervisionar o material gravado do longa. Também, ele podia ter sido mais generoso na narrativa lembrando de quem realmente fez a diferença no apogeu da jovem guarda. Assim como o longa sobre Cazuza, os personagens são tratados com uma superficialidade moral e ausência parcial de mérito histórico na cronologia musical.    
  Insistindo... Fiquei pasmo com esse papo de repaginação (ou coisa parecida).  E os americanos sempre nos dando aula. Eles já mostraram através de muitos filmes que repaginar uma geração é um salto no escuro (vide o fracasso da série Sun Records). No meu entendimento, o contexto insinuado por Lui, em determinadas cenas, é quase uma nova versão dos anos 1960 em um universo paralelo. Mas, aí, pergunto: "Minha Fama de Mau" é um trabalho de resgate ou estão forjando a verdadeira história? Já imaginou? Só faltou o diretor do filme colocar celulares nas mãos dos garotos em pleno anos dourados. Felizmente algumas passagens de cine documentários dão uma compensada no ritmo, mas não salvam o conjunto do filme. O autor e cantor Albert Pavão, que escreveu o livro "Rock Brasileiro 1955-1965" disse que nada se parece com a época que viveu. Considerando isso, acho que o público fiel a jovem guarda e ao rock and roll merece uma nova edição do filme, corrigindo os vexames estéticos. Não se trata de ouvir apenas críticas positivas ou não, por amizade ou coleguismo, a grande questão é oferecer o melhor possível ao público. 


Erasmo Carlos ao natural nos anos 1960, com cabelos penteados para frente e franja à la British Invasion e não o topete com brilhantina tipo anos 1950, usado equivocadamente por Chay Suede.


  Querem assistir um filme que respeitou caracterização de época? LEGALIZE JÁ, sobre Marcelo D2 e a gênese do Planet Hemp. Trata-se de uma obra que soube reunir uma boa equipe de produção. O diretor Johnny Araújo contou uma história em tom universal e com riqueza dramática, com atores bem realistas e de conteúdo emocional marcante. Também gostei do longa sobre Tim Maia, que teve muitos acertos, descontando os atores que, também, fizeram Roberto e Erasmo (que seguiram tudo à risca mesmo não sendo sósias). Até o Cauã Raymond se saiu bem como o cantor Fabio (palavras ditas pelo próprio biografado, Fábio Stella). E falando em contexto universal, vale dizer que uma das marcas do cinema americano, em matéria de cinebiografias, sempre foi encontrar um excelente maquiador e técnicos em efeitos especiais faciais (vide o clássico "Forrest Gump", onde o Elvis original é digitalizado no rosto de um ator ou mesmo no nacional "Não Pare na Pista", onde Julio Andrade está perfeito na caracterização de Paulo Coelho). E aí vem a pergunta que não quer calar? Os cineastas brasileiros vão dar a desculpa que faltou verba para solucionar a problemática de atores-não sósias, em filmes tais como, "Elis" e "Minha Fama de Mau"? Acho que não. Faltou pensar grande ou faltou (mais que tudo) a ousadia de buscar caras novas em testes de elenco. É por isso que sempre tenho um pé atrás com produtores / diretores de elenco. Dá vontade de ir buscar lá fora quando eu tiver que produzir o meu filme no futuro. Acho que isso explica o tempo que fiquei pesquisando e fui criticado pela demora de escrever o roteiro do longa BÍBLIA DO ROCK. Pois bem. Sou perfeccionista, sim. Respeito a curiosidade atiçada no público saudosista e, caso eu não consiga atingir meus objetivos, prefiro então mil vezes não lançar nada a fazer sucesso com algum filme embalado por um rótulo oportunamente passageiro.



"Legalize Já" é uma aula de como fazer uma cinebiografia.
   
  Finalizando... Sempre fui admirador dos trabalhos de Lui Farias ("Com Licença que Eu Vou a Luta" e "Lili, A Estrela do Crime") e Roberto Farias, que possui uma filmografia clássica e referencial ("Assalto ao Trem Pagador", "Pra Frente Brasil" e a trilogia de filmes "Roberto Carlos") e que lastimavelmente não foi seguida como base de produção de "Minha Fama de Mau"). Na faixa vibratória dos elogios, gostaria também de registrar que adoro o ator Reginado Faria (que foi galã de novelas, bom ator e diretor de filmes de comedia e que, por sinal, já atuou com Erasmo Carlos em "Os Machões"). Contudo, esse apreço que tenho pela família Farias, não exclui críticas ou minha liberdade de expressão em opinar a respeito deste lançamento tão aguardado por todos nós. Após a exibição, inconformado, divulguei minha visão sobre "Minha Fama de Mau" nas redes sociais, onde encontrei pouca discordância, uma vez que meu público não perdoa falhas históricas em filmes sobre personalidades do rock. Se o objetivo era repaginar o passado para as novas gerações isso se perdeu no caminho. Todavia, espero que Lui Farias aceite todas as críticas positivas e negativas, que seu novo filme irá colecionar pela frente, porque somente, assim, dando ouvidos a várias vozes, um artista evolui e administra melhor seu equilíbrio de forças. E o resto... a própria história fará justiça. Que assim seja...



Para saber mais, assista no you tube:

Trailer do filme. 


Chay Suede e Erasmo Carlos.